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Windshear e a Segurança de Voo


Por Alexander Coelho Simão*


Fazia uma abafada tarde de verão, naquele 2 de agosto de 1985, quando o telefone tocou no Centro de Operações da Delta Airlines, em Atlanta. A notícia era terrível. Um jato da empresa havia caído segundos antes do pouso em Dallas.


Delta Airlines 191 após a queda.

Ainda não havia confirmação da aeronave nem do número do voo, mas, aparentemente, tratava-se de um L-1011 Tristar.


O operador que atendeu a ligação comunicou imediatamente o fato ao Chefe de Operações da empresa, que recebeu a notícia com incredulidade: Não pode ser! Os Tristar não caem!!!


Essa era a medida exata do grau de confiança que todos na comunidade aeronáutica nutriam pelo jato da Lockheed. O grande trijato L-1011 com capacidade para mais de 300 passageiros e peso estimado em torno das 350 mil libras até então sofrera apenas dois acidentes fatais em 15 anos de carreira. Em nenhum deles foram identificadas falhas na aeronave.


De fato, naquela tarde, o Delta Airlines 191 não caiu. Ele foi derrubado, varrido dos céus por uma força descomunal ainda pouco conhecida: a temível tesoura de vento.


Esse trágico acidente, que vitimou 137 das 163 pessoas que estavam a bordo da aeronave, foi o principal responsável por tornar o windshear o fenômeno meteorológico mais conhecido da aviação mundial.

Naquele fatídico dia, pancadas de chuva e trovoadas podiam ser observadas no eixo de aproximação da pista 17L do Aeroporto Internacional de Dallas/Fort Worth (DFW). No entanto, mesmo ciente dessas condições, a tripulação decidiu prosseguir em meio às formações pesadas, o que se revelou um erro fatal.


Logo após adentrar na tempestade, a turbulência aumentou abruptamente, e o Lockheed recebeu um vento de proa de 26 nós. Correções foram feitas, mas, repentinamente, o vento mudou para 46 nós de cauda, resultando numa diminuição drástica de 72 nós na velocidade aerodinâmica.


Essa perda súbita de airspeed na aproximação final, quando o Delta Airlines estava a apenas 800 pés de altura, mostrou-se irrecuperável e, tragicamente, a aeronave veio a colidir contra o solo nas proximidades da rodovia que circundava o aeródromo.


À brusca e repentina mudança na direção e intensidade do vento experimentada pelo Delta Airlines 191 convencionou-se chamar internacionalmente de windshear, também conhecido, no cenário nacional, como tesoura de vento ou cortante de vento.


Apesar de concorrer para acidentes desde os primórdios da aviação, foi somente a partir do exame detalhado dos gravadores do Eastern Airlines 66, um 737 que caiu a poucos metros da cabeceira 22L do Aeroporto Internacional JFK, em junho de 1975, que se verificou pela primeira vez a presença das cortantes de vento como fator determinante para um acidente aeronáutico.

Desde então, a comunidade aeronáutica internacional tem desenvolvido pesquisas e programas de treinamento objetivando proporcionar melhor compreensão sobre esse fenômeno meteorológico e alertar pilotos quanto aos seus riscos associados.


Condições meteorológicas favoráveis ao windshear


O windshear é um fenômeno meteorológico que pode ser definido como a variação local do vetor vento numa dada direção e distância. Embora possa ocorrer em qualquer porção da atmosfera, as tesouras de vento são particularmente perigosas para a aviação na camada mais baixa da troposfera, desde a superfície do solo até aproximadamente 2.000 pés de altura. Nessa faixa, o fenômeno pode acarretar considerável perda de sustentação às aeronaves, sendo o tempo para identificação e recuperação muito curto. Algumas vezes, da ordem de poucos segundos.


Estudos realizados por cientistas e autoridade de aviação em todo o mundo identificaram uma grande variedade de condições geográficas e fenômenos meteorológicas associados às cortantes de vento, tais como: topografia, ondas de montanha, trovoadas ou CBs, sistemas frontais, pancadas de chuva, correntes de jato a baixa altura, ventos fortes de superfície, brisa marítima e terrestre, linhas de instabilidade e inversões de temperatura acentuadas.


Documentos técnicos, como o Pilot Windshear Guide do FAA e o DOC 9817 - Manual on LowLevel Windshear da ICAO, trazem orientações simples e diretas para o correto diagnóstico de cortantes de vento a baixa altura. Conforme apontam os estudos compilados, especial atenção deverá ser tomada pelos pilotos quando:


1. São previstas ou observadas trovoadas a 10 NM do aeródromo;
2. Há ocorrência de correntes de jato com ventos acima de 50 nós em altitudes inferiores a 2.000 pés;
3. Há, na superfície, ventos iguais ou superiores a 10 nós associados a rajadas;
4. A diferença entre o gradiente de vento na superfície e acima dela é de 20 nós ou mais;
5. O valor absoluto da diferença entre o gradiente do vento e o vento de superfície é de 30 nós ou mais;
6. Há inversão térmica ou isotermia abaixo de 2.000 pés de altura;7. Há ou está prevista a entrada de frente fria na região;
8. A diferença entre o vetor vento no cruzamento da frente é igual ou superior a 20 nós em um espaço de até 50 NM;
9. O gradiente de temperatura no cruzamento da frente é de 5°C ou mais em um espaço menor que 50 NM;
10. A velocidade do sistema frontal é de 30 nós ou mais.

Além disso, é sempre recomendável observar as informações dos AIREP (turbulência moderada a forte), dos controladores de tráfego, das observações METAR/SPECI e dos avisos de gradiente de vento (WS WRNG).


Comportamentos da aeronave sob windshear


Ocorrência de windshear durante a corrida de decolagem – antes da VR


A análise de um acidente típico, no qual ocorreu aumento do vento de cauda durante a corrida de decolagem, mostrou que inicialmente as indicações eram normais. Todavia, devido ao vento de cauda crescente, a aeronave somente atingiu a VR nas proximidades do final da pista. Enquanto o avião deixava o solo, a componente de vento de cauda continuou a aumentar, impedindo qualquer incremento de velocidade. Na sequência, a aeronave colidiu com um obstáculo localizado após o final da pista.


Uma velocidade menor do que a normal, devido à ocorrência de windshear, proporcionou sustentação insuficiente - mesmo estando a aeronave com atitude apropriada - o que resultou na incapacidade de deixar o solo em tempo hábil para livrar os obstáculos à frente.


Um fator adicional adverso é a dificuldade de se identificar rapidamente a deterioração da performance da aeronave. O pronto reconhecimento da ocorrência de windshear na pista pode ser difícil, uma vez que a única indicação para o piloto é o ganho de velocidade mais lento que o normal.

Em operações de rotina, a coordenação entre os tripulantes - particularmente os standard callouts - é essencial para assegurar o pronto reconhecimento da deterioração de desempenho. Potência máxima pode ser requerida para melhorar a performance, especialmente se foi utilizado reduced thrust.


Caso não haja pista suficiente para acelerar até a velocidade de decolagem ou para abortar, pode ser necessário rodar a aeronave em velocidades menores do que a VR. Nesse caso, um ângulo de ataque (pitch) adicional pode ser requerido para que se consiga suficiente sustentação.


Nos treinamentos tradicionais, os tripulantes são frequentemente instruídos a não rodar a aeronave em velocidades menores que a VR, de modo a prevenir um pitch excessivo que poderia resultar em contato da cauda da aeronave com a pista.


Na ocorrência de windshear durante a corrida de decolagem, rodar para um pitch maior a uma velocidade menor do que a normal pode ser requerido para que se consiga deixar o solo no comprimento de pista remanescente.

Ocorrência de windshear durante a decolagem - após a VR


Em um acidente típico estudado, a aeronave encontrou um windshear que provocou crescente aumento do vento de cauda logo após a saída do solo. Durante os primeiros 5 segundos após o liftoff, a decolagem parecia normal. No entanto, a aeronave impactou o solo após o final da pista, aproximadamente 20 segundos depois da decolagem.


Nesse exemplo, a aeronave se deparou com a cortante de vento antes de iniciar uma subida estabilizada, o que dificultou o reconhecimento da situação. A diminuição de IAS, acarretada pelo forte vento de cauda, fez com que os pilotos reduzissem o ângulo de ataque. Com pitch menor, a potência disponível não foi totalmente utilizada e a aeronave perdeu altitude. Quando o piloto se apercebeu do risco de choque com o solo, tentou uma recuperação para o pitch inicial. Isso exigiu aplicação de grande força sobre a coluna de comando. A ação corretiva, porém, foi tomada muito tarde.


Reduzir o pitch para compensar a diminuição de IAS é resultado da ênfase dada no passado à manutenção de velocidade. Conforme nos mostra a ICAO, a ação mais adequada à perda de velocidade e sustentação proveniente de tesouras de vento é controlar o ângulo de ataque, não permitindo que ele fique abaixo do normal. Somente com controle apropriado do pitch - aceitando-se uma redução na velocidade - é que se pode evitar a degradação da trajetória do voo.


A partir do momento em que a aeronave começa a se desviar da trajetória ideal e é induzida a elevadas razões de descida, tornam-se necessárias margens extras de tempo e altitude para mudar a direção da trajetória. No exemplo comentado, a performance da aeronave não foi utilizada adequadamente por dois motivos: não reconhecimento da situação e resposta inadequada.


Uma deterioração rápida do desempenho de subida pode não ser aparente para a tripulação, a menos que os instrumentos que indicam a trajetória vertical sejam cuidadosamente monitorados.


Ocorrências de windshear durante a aproximação para pouso


Ao analisarmos uma ocorrência típica, podemos notar a existência de vento de cauda e corrente descendente crescente ao longo da trajetória de voo. A aeronave perde velocidade, fica abaixo da rampa e toca o solo antes da cabeceira da pista.


Windshear durante a aproximação para pouso.

A redução da velocidade da aeronave ao encontrar o windshear resultou em diminuição da sustentação. Essa perda de sustentação aumentou a razão de descida. A tendência natural de abaixar o nariz em resposta à baixa velocidade causou perda adicional de altitude. O aumento do ângulo de ataque e a recuperação não foram iniciados em tempo hábil para evitar o contato com o solo.


Nesse caso, a aplicação gradativa de potência durante a aproximação pode ter encoberto a tendência inicial de diminuição da velocidade. As condições meteorológicas precárias ocasionaram elevação na carga de trabalho e complicaram a aproximação.


A transição do voo por instrumentos para o voo visual prejudicou a observação adequada dos instrumentos, e a coordenação inadequada entre os tripulantes resultou na falha de acompanhamento da trajetória do voo, impossibilitando o reconhecimento de sua degradação.

Uma aproximação estabilizada com callouts claramente definidos é essencial para auxiliar no reconhecimento de tendências inaceitáveis na trajetória do voo assim como para detectar a necessidade de iniciar uma arremetida.


Outra situação crítica causada por cortantes de vento durante o pouso ocorreu com o voo 202 da Transbrasil, no dia 27 de fevereiro de 2000. Segundo o Relatório Final do CENIPA, muito embora o Boeing 737-400 tivesse arredondado no primeiro terço da pista, devido ao deslocamento do vento de cauda, houve flutuação da aeronave durante um período de 7 segundos, resultando em um toque na pista 1.000 metros após a cabeceira.


Tranbrasil 202 após acidente no aeroporto Salgado Filho (SBPA).

Em seguida, a aeronave ultrapassou os limites da pista e quebrou o trem de pouso do nariz quando se encontrava com velocidade indicada de 48 kt e motores a 92% (esquerdo) e 90% (direito), com os reversores acionados. O vento era de cauda, de 42 kt.


Conclusão


O homem fez importantes progressos nos últimos anos no campo da Meteorologia. Muitos desses novos conhecimentos dizem respeito diretamente aos voos e às práticas da aviação moderna.


Este artigo foi escrito em linguagem simples para que o piloto entenda o fenômeno windshear e suas implicações para o voo. Ao lê-lo, ele não se tornará um previsor do tempo, mas aumentará seus conhecimentos práticos, o que permitirá conduzir seu avião com maior segurança.

Este trabalho terá cumprido útil missão se serviu para provocar no piloto um respeito salutar pelas forças do tempo, fazendo com que não se repita o que muitas vezes constitui erro fatal: enfrentar condições meteorológicas que estão muito além das margens de segurança recomendadas.


 

*Alexander Coelho Simão é Cel Av da FAB, trabalha na Divisão de Investigação e Prevenção (DIP) do CENIPA e possui mestrado em Segurança da Aviação e Aeronavegabilidade Continuada pelo ITA.

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