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Cognição distribuída na cabine de voo: um estudo preliminar

Por Selma Leal de Oliveira Ribeiro*



1. A cabine de voo: um sistema complexo?


A aviação é um sistema que envolve uma série de segmentos, tais como: o controle de tráfego aéreo, a infraestrutura aeroportuária, as telecomunicações aeronáuticas, o suporte operacional das companhias aéreas, entre outros.


Na cabine de voo, para executar sua tarefa de “voar o avião”, o piloto necessita manter uma relação harmoniosa com a aeronave, a tripulação e os diferentes segmentos do sistema de aviação.


De uma forma bem simplificada, as tarefas do piloto, até bem pouco tempo, eram: voar (controlar a aeronave), navegar (dirigir a aeronave de sua origem até o seu destino) e comunicar (fornecer dados, fazer solicitações, receber instruções e informações). Mais recentemente, levando-se em consideração a grande quantidade de recursos disponíveis, outra tarefa foi acrescentada ao seu trabalho: o gerenciamento.


A principal característica de todas essas tarefas reside no fato de que os seus desenvolvimentos ocorrem dentro de um ambiente de alta dinamicidade. Os requisitos perceptuais são consideráveis e as exigências cognitivas enormes, muitas das informações necessárias ao piloto devem ser sintetizadas a partir de uma grande quantidade de dados, alguns muito ambíguos em certas circunstâncias.

Neste sentido, é que a aviação, de modo amplo, e a cabine de voo, do ponto de vista mais restrito, podem ser denominadas como sistemas complexos.


Na busca de uma melhor compreensão da complexa relação entre o operador e a máquina, no caso da aviação, entre o piloto e o avião, que, considerando os crescentes avanços tecnológicos deste último, constitui-se hoje em uma relação de extrema complexidade, é que se optou por estudar a questão cognitiva que permeia esta relação.


Este artigo faz um pequeno recorte da interação entre o piloto e sua aeronave, ao desenvolver as tarefas de voo, usando aspectos da abordagem da Cognição Distribuída, desenvolvida por Hutchins e seus colaboradores (ROGERS, 1997; HUTCHINS; KLAUSEN, 1998).


2. A cognição humana e a cognição distribuída


Em linhas gerais, a cognição humana refere-se aos processos mentais envolvidos com o pensamento e a sua utilização. Aqueles que se dedicam ao cognitivismo acreditam que o estudo da maneira como as pessoas pensam levará a um amplo entendimento sobre grande parte do comportamento humano (STERNBERG, 2000).


A inserção de artefatos automatizados na cabine de voo, além de auxiliar o piloto na tarefa do voo, trouxe uma grande quantidade de informações. Então, torna-se extremamente necessária uma abordagem que possa estudar o ser humano além de sua individualidade, mas, também, a sua cognição em relação com todos esses artefatos e demais atores que compartilham esse espaço de trabalho.

A Cognição Distribuída é uma estrutura teórica, oriunda da ciência cognitiva, que propõe que o conhecimento e a cognição humanos não se encontram restritos ao indivíduo (HUTCHINS, 2000). Ao contrário, ela é distribuída ao se colocar memórias, fatos ou conhecimentos nos objetos, indivíduos, e ferramentas do ambiente. Seu objetivo é explicar as atividades cognitivas dentro de contextos de trabalho nos quais elas ocorrem.


Segundo Norman (1991, apud RIZZO; MARTI, 1996), as ferramentas que representam, armazenam e processam a informação são denominadas como artefatos cognitivos. Na cabine de voo, todos os displays e mostradores, além dos manuais, listas de verificação (checklist) e muitos outros, podem ser considerados como artefatos cognitivos, pois são usados como fontes de informação e auxiliam na tomada de decisão.


3. A cabine de voo, segundo a abordagem da cognição distribuída


Para Hutchins e Klausen (1998), o sistema da cabine de voo é composto pelos pilotos e seu ambiente informacional. O que significa que esse espaço de trabalho caracteriza-se como um “sistema cognitivo distribuído”, com dois atores (PF – Pilot Flying e PM – Pilot Monitoring), os artefatos que fazem parte da cabine e as interações existentes dentro do sistema (piloto-piloto, pilotos-artefatos, pilotos-tráfego aéreo etc.).


As tarefas realizadas na cabine de voo pelos pilotos são bem definidas em cada uma das posições ocupadas (HUTCHINS, 1995). O piloto na posição de PF tem por principal atribuição a condução e o controle da aeronave, usando as indicações dos instrumentos de voo para manter a aeronave nivelada. O piloto na posição de PM também observa as indicações dos instrumentos e as ações do PF no sentido de complementar e fornecer as informações necessárias para que este possa executar suas tarefas.


Os artefatos da cabine de voo constituem o espaço informacional compartilhado pelos pilotos, denominado de “horizonte de observação” (DECORTIS et al, 2002), onde cada piloto pode monitorar tudo o que está acontecendo, incluindo a tarefa executada pelo outro. Os instrumentos de voo, localizados neste espaço, podem ser visualizados por ambos os pilotos.


Uma das atividades desenvolvidas pelos pilotos, e que permeia todas as demais, do ponto de vista cognitivo, é o que eles denominam de “monitoramento ou crosscheck”. É uma atividade definida por eles como um “acompanhamento constante dos parâmetros de voo”. Entretanto, outros processos mentais inclusos no ciclo de processamento da informação também são utilizados, entre as quais: a atenção, a identificação, a memória, a interpretação, o raciocínio, a antecipação e a tomada de decisão.

A complexidade desse ambiente é reforçada pela “natureza distribuída da informação”, já que todo conteúdo informacional necessário está presente nos manuais, listas de verificação (checklists), comunicações e no próprio saber dos tripulantes (PAVARD; DUGDALE, 2003). Cada um desses atores faz uso de seus aparelhos cognitivos individuais para minimizar os efeitos dessa característica.


Entretanto, a tarefa não se dá de uma forma isolada e estanque. Segundo Roger e Ellis (1994), dentro deste espaço sociotécnico também pode (e deve) ser encontrado um compartilhamento de suas representações internas e dos artefatos de comunicação externa (meios de comunicação), promovendo a transmissão do conhecimento necessário.


Esta característica facilita o “conhecimento compartilhado da tarefa”, já que as informações necessárias para completar com êxito as atividades estão distribuídas em diferentes partes do ambiente, podendo ser captadas por qualquer um dos pilotos tendo em vista a “trajetória não determinada da informação”.


Finalmente, os pilotos, por fazerem parte de uma comunidade de prática profissional complexa, possuem um considerável conhecimento anterior de como deve ser o funcionamento desse espaço de trabalho. Deste modo, na realização das tarefas, os conhecimentos são compartilhados como um recurso para executar as atividades e solucionar os problemas (DECORTIS et al, 2002), algumas vezes, indo além do significado literal pronunciado. Esta característica denomina-se “compreensão intersubjetiva”.


4. Conclusão


Com base nessas noções, a cabine de voo pode ser vista como um sistema no qual os principais conceitos desenvolvidos pela teoria da Cognição Distribuída podem ser encontrados.


As funções desempenhadas no cockpit, embora apresentem um caráter individual, acontecem em sincronia de grupo, caracterizando este espaço de trabalho como socialmente distribuído.


Deste modo, pode-se considerar que a atividade aérea se reveste da possibilidade de compartilhamento também dos processos para a resolução dos problemas e consequente tomada de decisão, o que a classifica como uma atividade em que os mecanismos cognitivos também são socialmente distribuídos.

A estrutura desenvolvida por Hutchins e seus colaboradores oferece uma perspectiva diferente que pode contribuir para uma melhor compreensão dos fenômenos cognitivos que envolvem as tarefas desenvolvidas na cabine de voo.


Estudos dessa natureza podem contribuir significativamente para a melhoria dos treinamentos que envolvem a necessidade de tarefas coordenadas e colaborativas, como no caso do Treinamento em CRM, bem como no desenvolvimento de estratégias para incrementar o monitoramento das atividades realizadas e o compartilhamento das informações distribuídas no espaço de trabalho.


 

*Selma Leal de Oliveira Ribeiro é graduada em Psicologia. Mestre em Educação. Doutora em Engenharia de Produção. Fundadora e Diretora do Instituto Nacional para o Desenvolvimento Espacial e Aeronáutico (IDEA). Fundadora e Diretora da Associação Brasileira de Psicologia da Aviação (ABRAPAV). Docente do Curso de Graduação em Ciências Aeronáuticas e de Pós-graduação em Gestão da Segurança da Aviação Civil da Universidade Estácio de Sá.

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