Introdução
Uma incursão em pista ocorrida em 27 de março de 1977, no Aeroporto de Los Rodeos, Tenerife, resultou no maior acidente aéreo da história da aviação mundial. A colisão entre duas aeronaves Boeing 747 - o KLM 4805 e o PanAm 1736 - causou a morte de 583 passageiros e tripulantes (NTSB, 2007).
As incursões em pista, conhecidas no cenário internacional como runway incursions, são preocupação constante dos órgãos responsáveis pela aviação civil em todo o mundo e constituem atualmente uma das mais sérias ameaças à segurança de voo.
Resumidamente, este artigo tem por objetivo apresentar um panorama atualizado das incursões em pista no Brasil, bem como mostrar os principais resultados obtidos pelo CENIPA na investigação de um evento recente ocorrido no Aeroporto Internacional de Brasília (SBBR).
Dados estatísticos de incursões em pista no Brasil
Incursão em pista é definida pela ICAO (2007, p. 11) como “toda ocorrência em um aeródromo envolvendo a presença incorreta de aeronave, veículo ou pessoa na zona protegida de uma superfície reservada aos pousos e decolagens de aeronaves.”
De acordo com dados estatísticos fornecidos pelo DECEA (2019), ocorreram 1.473 incursões em pista nos últimos cinco anos em aeroportos brasileiros. Os dois gráficos a seguir apresentam a distribuição dessas ocorrências por elemento incursor e aeródromo.
Relatório Final IG-065/ CENIPA/2018 - Principais ensinamentos
Histórico do voo
O GOL 1732 decolou de SBBR com destino a SBSL, às 00h30min (UTC), a fim de realizar voo de transporte regular de passageiros, com seis tripulantes e 154 passageiros a bordo. O FAB 2345 havia decolado de SBSC com destino a SBBR, a fim de realizar transporte de pessoal, com três tripulantes e cinco passageiros a bordo.
Durante a corrida de decolagem do Boeing 737, em SBBR, foi identificado - ainda na pista - o FAB 2345, que acabara de pousar. A aeronave civil decolou sobre a militar passando a poucos metros de sua fuselagem. As aeronaves não tiveram danos e todos os seus ocupantes saíram ilesos.
Fatores contribuintes
De acordo com o Relatório Final IG065/CENIPA/2018, os seguintes fatores contribuíram para esta incursão em pista:
Atenção: a atenção do controlador ficou prejudicada pelo contexto vivenciado em sua rotina de trabalho, na qual, devido aos obstáculos físicos existentes na Torre, eram criadas expectativas de que as aeronaves seguiriam as orientações transmitidas, mesmo não sendo possível acompanhá-las visualmente. O fato de o controlador não ter identificado que o FAB não livrou pela Taxiway (TWY) “G” após o cotejamento, demonstrou que seu foco de atenção não estava devidamente orientado.
Atitude: apesar de apresentar bom preparo técnico, a copiloto do FAB 2345 demonstrava pouca familiaridade com a operação em SBBR. Isso pode ter contribuído para que ela não contestasse as instruções recebidas do comandante quanto à sequência de táxi após o pouso na pista 11L. Do mesmo modo, a atitude de não seguir a fraseologia padrão prevista no MCA 100-16/2016, por parte do controlador, pode ter contribuído para que a tripulação do FAB 2345 realizasse a troca de frequência para o Controle de Solo antes de sair da pista.
Comunicação: mesmo não compreendendo a solicitação do FAB 2345 após o pouso, o controlador não o instou a repetir a mensagem e emitiu instrução para que a aeronave livrasse na TWY “G”, considerando a proximidade que o avião se encontrava dessa interseção. Nesse caso, houve escuta seletiva, na qual se deduziu o conteúdo falado a partir do que era esperado ouvir. Ademais, a não assimilação por parte do controlador de Solo do tempo verbal (futuro) utilizado pelo FAB, ao comunicar a interseção por onde livraria, contribuiu para que ele não notasse que a aeronave ainda estava na pista.
Condições físicas do trabalho: a interferência da iluminação do pátio de estacionamento e o ponto cego da TWY “H” comprometeram a segurança da operação noturna.
Coordenação de tráfego (ATS): A inadequada troca de informações entre a Torre e o Solo, após o pouso do FAB, contribuiu para a incerteza quanto ao real posicionamento do tráfego.
Emprego de meios (ATS): apesar de toda dificuldade para a visualização do C95M na pista, a Torre não lançou mão do recurso previsto na ICA 100-37/2017, que previa emitir instrução para que a aeronave reportasse a saída da pista. É possível que o emprego desse meio tivesse evitado o incidente.
Fraseologia do Órgão ATS: é possível que a fraseologia utilizada pela Torre, no momento em que ela instruiu o FAB 2345 a chamar o Solo, sem condicionar esse ato à saída da pista em uso, tenha induzido os pilotos a realizarem a troca de frequência ainda sobre a runway. Com essa ação, os pilotos militares ficaram impossibilitados de interferir quando a Torre autorizou indevidamente a decolagem do 737, enquanto a pista ainda estava ocupada.
Habilidade de controle (ATS): não houve destreza na execução dos procedimentos ATS, tais como varredura visual e uso da fraseologia, que esgotassem as possibilidades de identificar que havia uma aeronave sobre a pista no momento da autorização da decolagem de outra.
Infraestrutura aeroportuária: a existência de diversos pontos cegos no aeródromo contribuiu para que o controlador da Torre inferisse que o FAB 2345 estava em posição diferente da real. As câmeras utilizadas para mitigar o risco decorrente da existência de pontos cegos não cobriam todas as áreas e não eram dedicadas exclusivamente para o uso da Torre. A iluminação de alguns pátios de estacionamento ofuscava a visão dos controladores. Todas essas condições, aliadas à inexistência de um Sistema de RADAR de Movimentação de Superfície, contribuíram para que a aeronave militar não fosse percebida sobre a pista no momento em que foi autorizada a decolagem do GOL 1732.
Percepção: a similaridade entre as letras “C” e “G” associada às condições para a sua visualização, no período noturno, concorreu para provocar percepção equivocada nos pilotos. A percepção do controlador foi reduzida pela sua expectativa de que a tripulação cumprira estritamente a orientação. Além disso, a não visualização da aeronave em função do ponto cego da TWY “H”, o levou a concluir que a pista estava livre. A expectativa de não encontrar a aeronave na pista reduziu a percepção do controlador em relação à real localização do avião, contribuindo para o desfecho da ocorrência.
Pouca experiência do piloto: a falta de familiarização da copiloto do FAB 2345 com o aeródromo pode ter contribuído para que ela não questionasse a mensagem do comandante, solicitando livrar a pista pela TWY “C”, quando, na verdade, a intercessão pela qual eles passavam era a TWY “G”.
Sistemas de apoio: não foi identificado qualquer regulamento que definisse a posição na qual as aeronaves deveriam realizar a troca de frequência para o Controle de Solo após o pouso. A ausência de previsão em normas pode ter contribuído para que a tripulação do FAB 2345 mantivesse a escuta do Solo enquanto ocupava a pista em uso.
Conclusão
Neste artigo foram apresentados alguns dados estatísticos sobre incursões em pista no Brasil, assim como os resultados obtidos na investigação de um evento recente ocorrido em SBBR.
Conforme pôde ser observado neste incidente grave, as circunstâncias que geram uma incursão em pista diferem consideravelmente e surgem em função de diversos fatores contribuintes que, invariavelmente, pertencem a três segmentos principais: a cabine de comando, a infraestrutura aeroportuária e o controle de tráfego.
Essa constatação comprova, de modo indiscutível, que a solução para esse problema requer mobilização geral e participação efetiva de todos os profissionais envolvidos nas atividades aeroportuárias. Faça a sua parte! Bons voos!!!
________
Sobre o Autor
Alexander Coelho Simão é Cel Av da FAB, trabalha na Divisão Operacional (DOP) do CENIPA e possui mestrado em Segurança da Aviação e Aeronavegabilidade Continuada pelo ITA.
________
Texto originalmente publicado no ASAGOL Safety News 10. Para ler a edição completa clique aqui.
Comentários