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A Psicologia na Aviação: Contribuições & Perspectivas



Por Márcia Regina Molinari Barreto, M. Sc.* e Selma Leal de Oliveira Ribeiro, D. Sc. 2**


1. Introdução


Foi em 23 de outubro de 1906, no campo de Bagatelle, Paris, que Santos Dumont e o seu Oiseau de Proie II, mais conhecido como “14-Bis”, após algumas tentativas, finalmente percorreram cerca de sessenta metros, a uma altura de aproximadamente dois metros, tendo mais de mil espectadores como testemunhas. Já se passaram mais de 100 anos desde que o primeiro mais pesado que o ar levantou voo em uma demonstração de que, com persistência e habilidade, o homem seria capaz de voar.


A partir desse feito, a aviação se projetou como um modal de transporte de grande importância para o ser humano, recebendo contribuições significativas de muitas áreas do conhecimento.


Uma dessas áreas que vem trazendo sua participação até os dias atuais é a Psicologia, que buscando compreender as limitações e capacidades humanas frente ao ambiente adverso no qual a atividade aérea acontece, oferece meios e estratégias para sua melhor adaptação e a atuação mais eficaz.


Neste sentido, a participação da Psicologia apresenta-se como um ponto importante para impulsionar o desenvolvimento da aviação, promovendo segurança, eficiência e conforto dos que estão envolvidos na atividade aérea, sejam trabalhadores ou seus usuários (Martinussen & Hunter, 2018, p. 2).

Assim sendo, o objetivo deste artigo é apresentar a evolução da participação da Psicologia para este campo da atividade humana e as novas questões que se impõem ao psicólogo relacionadas às crescentes inovações tecnológicas, como também as demandas da sociedade relacionadas à mobilidade aérea urbana.


2. A Psicologia no Contexto da Aviação: no Mundo e no Brasil


A participação da Psicologia no contexto da aviação teve início durante a Primeira Guerra Mundial, quando o foco era a seleção e o treinamento daqueles que iam conduzir as máquinas voadoras (Koonce,1984).


Posteriormente, com a necessidade de fornecer melhores informações para os pilotos, o foco da Psicologia incluiu a própria aeronave, com ênfase especial no desenvolvimento de controles e dispositivos de informação que auxiliassem o tripulante em suas tarefas. Verificou-se também o incremento de estudos dos efeitos dos estressores ambientais como altitude, forças G, ruído e temperatura sobre o operador. (Koonce, 1984, p. 500).

Martinussen & Hunter (2018) nos indicam que, durante a Segunda Guerra Mundial, a ênfase na melhoria dos processos de seleção e de treinamento de tripulações visava garantir o sucesso e a superioridade aérea nas batalhas.


Ao término da Segunda Guerra Mundial, a experiência dos psicólogos foi levada para as universidades e para a indústria aeronáutica.


Várias disciplinas do campo da Psicologia contribuíram para superar os desafios associados à pilotagem e para a segurança da aviação. Os conhecimentos advindos da Psicologia Clínica, Comportamental e Cognitiva foram aplicados na elaboração de procedimentos seletivos, design de equipamentos e métodos de treinamento (Mauriño, 1994).


A evolução tecnológica das aeronaves e a utilização de sistemas automatizados mostraram a necessidade de estudos que destacassem a compreensão dos processos cognitivos na tomada de decisão.


A contribuição da Psicologia Social, no desenvolvimento dos treinamentos denominados Cockpit Resource Management – CRM, apresenta-se como ponto importante na melhoria dos processos de comunicação, tomada de decisão, gestão da carga de trabalho, cooperação e liderança no ambiente operacional.


Na perspectiva da Psicologia Organizacional e Social observa-se muitos estudos e várias propostas de abordagens que envolviam a compreensão da influência da cultura corporativa sobre o comportamento de indivíduos e grupos e sobre o desenvolvimento das chamadas “culturas seguras e inseguras”, que influenciaram, significativamente, a visão sobre a segurança operacional na aviação (Ribeiro, 2019).


São muitas as contribuições para o ambiente da aviação e, há mais de meio século, as da Psicologia têm sido reconhecidas em diferentes partes do mundo, como importantes aliadas para a segurança operacional.


No Brasil, os primeiros trabalhos que se tem notícia estão relacionados aos desenvolvidos em período anterior à Segunda Guerra Mundial (Prado da Fonseca, Rocha & Arruda, 2016), quando a aviação militar brasileira esteve vinculada à Marinha do Brasil (criada em 1916) e ao Exército Brasileiro (criado em 1918). Somente em 1941, foi criado o Ministério da Aeronáutica, que reuniu as aviações da Marinha e do Exército, além do Departamento de Aeronáutica Civil – DAC (Brasil, 1941).


Até o ano de 1967, as atividades ocorriam de forma isolada e descontínua e tinham como foco a pesquisa e acompanhamento dos alunos das escolas militares. Em 1967, tendo por objetivo o levantamento das bases técnicas e científicas para a seleção psicológica de candidatos aos diversos cursos oferecidos, incluindo o de aviadores, foi criado o Serviço de Seleção e Orientação (SESO), que, mais tarde, recebeu a atual denominação de Instituto de Psicologia da Aeronáutica (IPA) (Coelho, Barreto & Fonseca, 2007).


A década de 80 marcou o início da capacitação dos psicólogos para atuarem nas áreas de investigação e prevenção de acidentes aeronáuticos, coordenada pelo Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos - CENIPA (Coelho, Barreto & Fonseca, 2007).

Já em meados da década de 90, as atividades dos psicólogos se ampliaram, apoiando a implantação do programa de Gerenciamento de Recursos de Tripulação (CRM) na Força Aérea Brasileira (FAB); a realização da primeira pesquisa brasileira sobre a influência do aspecto psicológico na ocorrência de acidentes aeronáuticos na aviação civil e militar; a realização de pesquisas de levantamento de estressores em algumas Unidades Aéreas e em Centros de Controle de Tráfego Aéreo da FAB; e, ainda, a realização do I Curso de Extensão em Psicologia Aplicada à Aviação, no ano de 2004, destinado a psicólogos atuantes ou com a intenção de atuar em organizações militares ou civis de aviação (Coelho, Barreto & Fonseca, 2007).


São 55 anos de Psicologia aplicada no ambiente da aviação no Brasil. Inicialmente concentrada no ambiente militar, atualmente é possível encontrar psicólogos atuando em diferentes setores da indústria aeronáutica, tais como: empresas aéreas, cursos de ciências aeronáuticas, escolas de aviação, órgão regulador, controle de tráfego aéreo, infraestrutura aeroportuária, entre outras.


Publicações, pesquisas e a promoção de eventos técnico-científicos, ocorridos ao longo desse período, evidenciam o crescimento e a consolidação desta área de atuação para os psicólogos.


O surgimento da Associação Brasileira de Psicologia da Aviação (ABRAPAV), em 2013, em colaboração com todas as iniciativas até aqui desenvolvidas, tem reforçado a importância da adequada qualificação dos psicólogos que trabalham na aviação. Neste sentido, traz expectativas concretas para a construção de um referencial técnico e ético que contribua para a formação e aperfeiçoamento profissional dos psicólogos que atuam no setor, com base no estabelecimento de competências e na realização de um curso formal de pós-graduação lato sensu em Psicologia da Aviação.


3. Tendências e Considerações finais


Inovações tecnológicas são abundantes no ambiente aeronáutico, em pouco mais de um século, desde o voo do “14-Bis”, a aviação aprendeu a voar mais rápido e mais longe e se transformou em um modal de transporte seguro e confiável, facilitando a rápida movimentação de pessoas, mercadorias e carga ao redor do mundo.


Demandas emergentes da sociedade relacionadas à mobilidade aérea urbana e a sustentabilidade, aliadas ao desenvolvimento acelerado da tecnologia, níveis mais altos de automação e complexidade dos sistemas, contribuíram para recentes avanços na aviação, como os veículos aéreos não tripulados.


Inicialmente aplicados em contextos militares, estão se tornando cada vez mais presentes nos cenários urbanos com aplicações variadas que incluem, por exemplo, entrega de encomendas, produção de imagens ao vivo de grandes eventos e fiscalização de instalações industriais.


A introdução de novas tecnologias é acompanhada por mudanças na forma como o trabalho é realizado e nas restrições que são impostas aos operadores em diferentes níveis. A pilotagem de veículos aéreos evoluiu passando do uso de instrumentos e controles manuais para pilotar a aeronave, para posteriormente monitorar os instrumentos que voam a aeronave quase automaticamente, chegando à utilização de instrumentos de estação terrestre para pilotar aeronaves remotamente (Spravka, Moisio & Payton, 2005).


Neste cenário operacional, novas questões se impõem ao psicólogo relacionadas à análise de trabalho e da tarefa para a identificação de habilidades relevantes para a realização da atividade, ao desenvolvimento de perfis de requisitos específicos para o recrutamento e seleção de pessoal; ao treinamento de equipes e profissionais para operar aeronaves e sistemas a partir de salas de controle e na identificação de fatores que podem aumentar a probabilidade de erro humano, como condições de trabalho e estressores exclusivos desse ambiente operacional que não é o cockpit da aeronave.


Há décadas, a Psicologia consolidou-se como importante aliada para a segurança da aviação e promoção da saúde e bem-estar dos envolvidos na atividade, porém a aviação continua sendo um domínio desafiador. Sendo assim, é essencial que os psicólogos que trabalham na aviação ou que tenham interesse de nela ingressarem, tenham conhecimento das especificidades do complexo sistema da indústria aeronáutica, do impacto do ambiente operacional sobre o desempenho dos profissionais, tanto individual quanto coletivamente, e desenvolvam as habilidades necessárias para responder com competência as demandas em seu exercício profissional.

 

Referências Bibliográficas:


  • Brasil. Presidência da República. (1941). Decreto-Lei nº 2.961, de 20 de janeiro de 1941. Cria o Ministério da Aeronáutica. Diário Oficial da União. Seção 1. 20/01/1941. p. 1022. Brasília/DF.

  • Coelho, E. C., Barreto, M. R. M. & Fonseca, C. S. (2007). Contribuições da Psicologia à segurança de voo. In J. P. Borges et al. (Orgs.). Coletânea de artigos científicos. (pp. 49-54). Rio de Janeiro: Instituto de Psicologia da Aeronáutica / Sumauma Ed. e Gráfica.

  • Koonce, J. M. (1984). A brief history of aviation psychology. Human Factors. v. 26(5), 499-508. doi: https://doi. org/10.1177/001872088402600502

  • Martinussen, M. & Hunter, D. R. (2018). Aviation Psychology and Human Factors. Boca Raton, FL: Taylor & Francis Group.

  • Mauriño, D. E. (1994). Foreword. In N. Johnston, N. Mcdonald & R. Fuller. (Eds.) Aviation psychology in practice. Aldhershot: Ashgate Publishing Limited.

  • Prado da Fonseca, L.E., Rocha, H.L., & Arruda, A. (2016). Yes, nós temos Wundt: Radecki e a história da psicologia no Brasil. Revista Tesis Psicológica, 11(1), 18-35. Recuperado de https://revistas.libertadores.edu.co/index.php/TesisPsicologica/article/view/689/665

  • Ribeiro, S. L. O. (2019). Breve retrospectiva histórica sobre a participação da psicologia no contexto da aviação. In S. L. O. Ribeiro, C. S. Santos, L. M. E. S. P. Cabral, M. Fajer, M. R. M. Barreto & M. C. C. Pereira. Os voos da Psicologia no Brasil: estudos e práticas na aviação. Livro 2. (pp. 21-50). Rio de Janeiro: PoD.

  • Spravka, J.J., Moisio, D.A. & Payton, M.G. (2005). Unmanned Air Vehicles: A New Age in Human Factors Evaluations. In Flight Test – Sharing Knowledge and Experience (pp. 5-1 – 5-16). Meeting Proceedings RTO-MP-SCI-162, Paper 5A. Neuilly-sur-Seine, France: RTO. Recuperado de https://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.214.7660&rep=rep1&type=pdf

 

*Márcia Regina Molinari Barreto é psicóloga, mestre em Segurança de Aviação e Aeronavegabilidade Continuada e Especialista em Desenvolvimento de Recursos Humanos. Experiência de mais de 28 anos em Psicologia Aplicada à Segurança de Voo e do Trabalho, atuando principalmente nas seguintes áreas: investigação e prevenção de acidente aeronáutico, vistoria de segurança operacional, treinamentos e suporte psicológico pós-ocorrência de acidente. Fundadora e Membro da Diretoria da Associação Brasileira de Psicologia da Aviação (ABRAPAV). Endereço para acessar este CV: http://lattes.cnpq.br/5592746209528754


**Selma Leal de Oliveira Ribeiro é psicóloga, mestre em Educação e doutora em Engenharia de Produção. Fundadora e Membro da Diretoria da Associação Brasileira de Psicologia da Aviação (ABRAPAV). Fundadora e Diretora do Instituto Nacional para o Desenvolvimento Espacial e Aeronáutico (IDEA). Docente dos Cursos de Graduação em Ciências Aeronáuticas e de Pós-graduação em Gestão da Segurança da Aviação Civil da Universidade Estácio de Sá. Experiência de mais de 40 anos em atividades relacionadas à Psicologia aplicada ao ambiente aeronáutico, atuando principalmente nas seguintes áreas: pesquisa, prevenção de acidentes, treinamento e consultoria técnica especializada. Endereço para acessar este CV: http://lattes.cnpq.br/5030428978618441.

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